A manhã arrastava-se na lentidão do ócio. Acordara pontualmente às seis, fizera as abluções e chamara a camareira para a vestir. Juntas cumpriam o ritual que escondia a mulher e a transformava em senhora, como se o primeiro conceito não bastasse à definição da sua existência. O processo era lento apesar dos muitos anos de prática. A sua presença ornamental exigia um escrupuloso rigor nas escolhas do quotidiano, e por isso vestes, capas e joias, eram impecavelmente limpas antes do uso. Os seus aposentos eram vastos, na antecâmera, onde a luz era escassa, dormia ainda na gaiola a ave que o esposo lhe oferecera no dia em que casaram. O pássaro, de beleza rara como a dela, tinha longas penas de um poente luminoso, e apesar do cativeiro, trinava a sua alegria assim que o breu da noite se dissipava. Nos primeiros meses, esta alegria contagiara a jovem noiva, porém, à medida que o espartilho matinal se afundava em torno da fenda do peito, a mulher decidira manter a ave num espaço mais recôndito, punindo-a pela sua insolência. Como ousava a criatura versar tamanha felicidade, se a cada dia se sentia definhar, minguando em sentido, em amplitude de alma, em viço? Mudou-a, portanto, para uma pequena gaiola que transportava bastas vezes consigo, como se a ave fosse uma extensão simbólica de si mesma. Descera para fazer a primeira refeição do dia, e como sempre, o esposo há muito que se recolhera na biblioteca, espaço que lhe era vetado, entrando nele apenas mediante o devido anúncio. A mesa farta era sinónimo de uma abastança impune, os serventes mantinham-se à parte, surgindo apenas quando solicitados, e por isso, todas as manhãs comia sozinha no mais absoluto silêncio, interrompido apenas pela ousadia do pássaro, que amiúde piava expectante – ansiava sempre pelo momento em que a mulher lhe abria a gaiola e lhe permitia que as penas ganhassem vida. Este gesto, inicialmente fruto da bondade e inocência da senhora, foi com o tempo ganhando traços de crueldade, se primeiramente incidia na libertação do animal, foi-se adensando o prazer na sua clausura. O bicho tinha por hábito procurar poiso perto do peito da mulher permitindo-lhe alguns afagos, facto que num primeiro impacto lhe causara estranheza e deleite, mas que gradualmente se tornou num fardo. Naquela manhã, a mulher comera com especial prazer. O pão fresco, ainda quente, a manteiga recém batida, os doces de fruta, a tarde de maçã e creme de leite, o chá, tudo lhe parecia inevitavelmente tentador e não se furtou à gula. Enquanto ela comia, o pássaro, poisado na aba do decote, começou a trinar, como nos tempos primeiros em que a felicidade era uma constante e não resíduo no fundo do último copo de vinho do dia. Coincidiu este incidente com a entrada do esposo na sala de refeições, e ao vê-lo, acometida por uma ira irracional, a mulher apertou o pássaro, sem que no rosto se notasse um esgar. O animal tentou debater-se, e em breve, o vestido dela ficou coberto de belíssimas penas ante o ar incrédulo do homem que a tudo assistia sem emitir um som. O bicho, sentindo o afrouxar das mãos, tentou em vão o caminho da liberdade, tombando por fim, já sem vida, aos pés do homem que como se da força vital do bicho dependesse, caiu de joelhos com um fio de sangue a escapar-lhe ao canto da boca.
Texto de Susana Berardo


Styling – Leonor Luís | Make-up – Vanessa Kuzer | Hair – Lorelay Paños
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